O poeta e artista plástico Mário Cesariny
Militante e defensor leal do movimento Surrealista, Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006) escreveu, pintou e desenhou, exatamente por esta ordem, desde os 19 anos. A sua obra tanto poética, como plástica contribui na construção da história contemporânea. O pintor destacou-se no panorama artístico ao rejeitar qualquer preocupação técnica e formal, tendo sido o primeiro a criar uma colagem surrealista no pós-guerra português. A sua carreira foi intensa, tendo as duas áreas, artes plásticas e escrita, se interligando continuamente, pois dos seus poemas surgiam as pinturas e vice-versa.
Publicou o primeiro livro, Corpo Visível (1950), um ano após a criação do grupo Os Surrealistas. Seguiram-se outras publicações, sendo a maioria após o 25 de abril de 1974 - Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), entre outros. As suas obras, literárias e plásticas destacam-se pela sua riqueza e complexidade para o movimento surrealista:
“Como um dos principais críticos e teóricos do movimento surrealista, manteve ao longo da sua carreira inúmeras polémicas literárias, quer contra os detratores do surrealismo quer contra os que, na prática literária, o desvirtuavam. A sua obra poética começou por refletir, em Corpo Visível ou Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, o gosto pela observação irónica da realidade urbana que, fazendo-se eco de Cesário Verde, constitui ainda uma fase pouco significativa relativamente a volumes próximos da prática surrealista como Manual de Prestidigitação. Aí, a mordacidade e o absurdo, o recurso ao insólito, aliados a uma discursividade que raramente envereda por um nonsense radical, como ocorre na obra de António Maria Lisboa, permitem estabelecer, como nenhum outro autor da década de 50, um ponto de equilíbrio entre o primeiro modernismo e a revolução surrealista.”
Descubra parte da sua vasta obra poética através dos cinco excertos publicados neste artigo:
Em Todas as Ruas te Encontro
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
Tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
Mário Cesariny em Pena Capital
Pastelaria
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano
Um Grande Utensílio de Amor
um grande utensílio de amor
meia laranja de alegria
dez toneladas de suor
um minuto de geometria
quatro rimas sem coração
dois desastres sem novidade
um preto que vai para o sertão
um branco que vem à cidade
uma meia-tinta no sol
cinco dias de angústia no foro
o cigarro a descer o paiol
a trepanação do touro
mil bocas a ver e a contar
uma altura de fazer turismo
um arranha-céus a ripar
meia-quarta de cristianismo
uma prancha sem porta sem escada
um grifo nas linhas da mão
uma Ibéria muito desgraçada
um Rossio de solidão
Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano
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