Rui Brito é o diretor da Galeria 111, uma das mais antigas galerias de arte do país, fundada pelo seu pai, Manuel de Brito, em 1964. Desde o seu início até à atualidade, esta galeria tem a preocupação de promover a apresentação de um leque alargado dos mais representativos artistas nacionais e internacionais. Têm vindo a representar artistas conceituados de várias gerações, tais como Paula Rego, Eduardo Batarda e Ana Vidigal.
Arte e a cultura tem estado sempre no centro da sua vida. Conte-nos como começou esta paixão de uma vida pelo mundo da Arte.
Começou de uma forma inevitável. Tendo sido o meu pai, o fundador da Galeria 111, em 1964, nasci rodeado de artistas, arte, exposições e museus. Acabei por naturalmente ganhar uma sensibilidade artística praticamente à nascença. Aliás, o Júlio Pomar ofereceu-me logo um quadro quando eu nasci, um orangotango. Naquela altura, Júlio Pomar, estava numa fase dos animais. Tive o privilégio, desde criança, ter convivido e privado com muitos dos artistas de referência em Portugal. As paredes da casa dos meus pais estavam forradas, de cima a baixo, com arte. O meu quarto não tinha posters de bandas de música, mas tive o privilégio de ter peças da Paula Rego, Júlio Pomar, Botelho. Foi algo muito normal para mim.
Quais são os pontos mais extraordinários?
Há muitas histórias de facto! Há vários artistas que me senti logo muito próximo, mas a Paula Rego e a Lourdes Castro são, sem dúvida, duas pessoas pelas quais eu tenho um carinho muito especial. Com a Lourdes Castro, tenho memórias de estar na (Ilha da) Madeira, num convívio no jardim com a cadela dela. Havia um lado muito humano, uma aura muito boa que sempre fez com que tivesse uma grande ligação à Lourdes (Castro). Por um lado muito mais perverso e infantil, a Paula Rego. Eu lembro-me quando era pequeno cá, em Portugal, não havia brinquedos como em Londres, e a Paula (Rego) fazia questão de trazer coisas inacreditáveis para aquela altura. Lembro-me dessas histórias, de quando ela trouxe uma mosca varejeira de plástico. Hoje em dia, estas coisas são todas banais. Ela não só trazia essas coisas como também havia ali um ritual de formação. Ela dizia: quando a sopa estiver servida, tu sem ninguém ver pegas na mosca e subtilmente metes a mosca no prato. Eram tudo coisas para uma criança ouvir de um adulto, acabava por ser fascinante. Também me lembro de umas cápsulas, que se usa hoje muito no carnaval para simular sangue. A Paula (Rego) dizia para, quando o meu pai estivesse com um cliente muito importante, pôr a cápsula na boca, mastigar muito bem e quando sentisse o “sangue” a escorrer pela boca aparecer a gritar. São histórias que eu guardo com muito carinho e fazem parte de uma relação muito boa que ainda tenho com a Paula Rego. Os temas das obras de Paula Rego não são os mais fáceis, mas o público manifesta um grande carinho por ela e pelo trabalho.
A Galeria 111 tem diversos projetos simultaneamente “em progresso”. Há algum que te esteja a apresentar desafios específicos que gostasses de partilhar?
Eu estou muito contente com a exposição que temos neste momento a decorrer na Galeria 111. A exposição chama-se Besta e reúne quatro artistas: Alexandre Conefrey, que acaba por assinar a curadoria e que juntou três amigos artistas, Pedro A. H. Paixão, Rui Chafes e Rui Moreira. Para além de achar que a exposição se encontra muito bem concebida, acho que aborda temas que são muito pertinentes e sensíveis, que não devem ser esquecidos. Nós vivemos uma situação de Guerra e os temas batem muito não só na guerra, mas também nos ditadores e no colonialismo. Acaba por ser uma exposição muito marcante para os tempos que estamos a viver e que me deu muito prazer em fazer. Para o visitante não é uma exposição fácil de ver! Por exemplo, uma das esculturas do Rui Chafes são treze forcas, feitas em ferro. Uma imagem muito impactante, e percebo que há muitas pessoas que não lidam bem com essas imagens. É uma exposição que estará patente até 8 de maio e vai coincidir com a semana do ARCO em Lisboa, acabando nessa semana.
Já trabalha no mundo da arte há algum tempo. Qual é a sua percepção do estado da arte em Portugal?
É um meio pequeno que acaba por funcionar bem, mesmo com a nossa escala é um meio que nos entusiasma, contudo às vezes o ambiente, entre artistas e colegas não é o mais saudável. É algo que me entristece, pois acho que há mercado para todos e público para todos os tipos de abordagem, por isso devia ser mais saudável nesse aspecto. Com a abertura de algumas galerias estrangeiras e com alguns artistas e curadores internacionais a terem Portugal no radar, as coisas têm melhorado e estamos a atravessar uma fase desafiante, mas mais saudável.
Quais são as temáticas que deveriam ser mais debatidas?
Eu nunca gosto de me meter no processo criativo dos artistas! Por exemplo, no caso de dois artistas que temos em exposição agora: Pedro A. H. Paixão e Alexandre Conefrey. As temáticas abordadas no trabalho de Pedro A. H. Paixão são uma coisa natural. Nasceu em Angola, o bisavô dele tinha uma fábrica de agropecuária, acabou por crescer lá e tem imensas memórias desses tempos. O Alexandre Conefrey sempre teve um fascínio e trabalhou com máquinas de guerra, ou seja, o trabalho dele tem sempre uma temática recorrente. Se calhar, quando os artistas têm uma abordagem muito evidente, eu acho que não resulta tão bem.
Com a questão da pandemia, houve artistas, como o Rui Pedro Jorge que pintaram a sua realidade. Na altura, Rui Pedro Jorge estava a viver em Bucareste, na Roménia, e olhava para as fachadas dos prédios e via a dinâmica que as casas tinham, e criou nas suas obras esses ambientes da pandemia, mas de uma forma natural e não forçada. Quando os artistas fabricam muito ou quando tentam produzir na expectativa de um colecionador ou de um curador perdem muito essa energia e lado genuíno.
Consegue escolher uma exposição que o marcou significativamente?
É muito complicado selecionar artistas favoritos, pois sou contra rótulos. Eu licenciei-me em História da Arte, e respeito desde as gravuras rupestres até Arte Contemporânea, pois tudo se relaciona. Adoro ver museus e ver peças barrocas e renascentistas. Para mim não há uma catalogação, só porque eu exponho Arte Contemporânea, não posso gostar do que está para trás?…
Recentemente, deu muito gozo produzir a exposição da Paula Rego, por ser uma artista por quem tenho uma grande admiração, pela convivência que sempre tive com ela, mas também pelo trabalho dela. Tive o privilégio de ver a obra dela a evoluir de perto e muitas vezes, eu uso a Paula rego, como exemplo de grandeza. Como pessoa, é alguém que admiro muito porque apesar de ter atingido o sucesso que atingiu, nunca mudou a sua maneira de estar, nunca se esqueceu dos amigos, nunca deixou de ser generosa, nunca lhe subiu o sucesso à cabeça. Numa altura em que estava a ter uma retrospectiva na Tate Britain, no mês em que já se sabia que ia ser um dos grandes destaques da Bienal de Veneza deste ano, ter o privilégio de produzir uma exposição com grandes dimensões, que abrangia vários períodos de tempo da obra dela, foi de facto marcante. Fugindo das exposições da Galeria 111, há uma exposição que me marcou muito, na Fundação La Caixa, em Barcelona, que se chamava algo como “O mundo interior à descoberta”, que era um confronto entre artistas que singraram — artistas que tiveram carreiras muito sólidas, sobretudo século XX, que eram conhecidos por terem uma personalidade forte — e pessoas que estavam internados em manicómios, com diagnóstico de loucura identificáveis. Achei este confronto fascinante! Estávamos anteriormente a falar da essência, e eu acho que estes artistas têm uma energia diferente e forte. Foi engraçado ver esse confronto.
Qual é o seu conselho para os jovens artistas, curadores, produtores, entre outros agentes, que atualmente dão os primeiros passos neste mundo?
Manter uma certa humildade. Acho que se deve respeitar toda a gente e acima de tudo, ver muitas exposições. Ver, ver, ver é muito importante! Conhecer as pessoas, os artistas, visitar os ateliês, e a partir daí, desenvolver uma linguagem própria e tentar acrescentar algo que seja contemporâneo, inovador e que nos faça ver as coisas numa perspetiva diferente. E nunca esquecer o lado humano!
A Galeria 111 mudou para um espaço novo há cerca de dois anos, e é onde tenho estado mais tempo. Tenho feito muitas visitas, de forma desconstruir a ideia de que a galeria é um espaço frio, inóspito e no qual as pessoas não se cumprimentam. No nosso espaço, além do expositivo, há um armazém com seiscentos metros quadrados, onde podemos encontrar um saco de boxe e uma mesa de matraquilhos. Um espaço imponente, mas também descontraído. Muitas crianças que visitam as exposições com as escolas, posteriormente trazem os pais. A arte de facto tem uma energia muito própria, é especial e deve estar disponível para toda a gente. Todos se devem sentir bem ao visitar espaços expositivos como a Galeria 111. Perante a sociedade que nos rodeia, que é muito injusta, acho que é muito importante termos esse lado humano.
Consegue apontar uma lista de artistas nacionais e internacionais, que estejam a transformar o panorama artístico atual? Quais são os artistas com quem anseia poder trabalhar?
Difícil de responder! A nível internacional, assim mais recentes, há dois artistas que transformaram o mercado da arte. O primeiro é Marcel Duchamp, com a peça “Fonte”, que abriu os horizontes da criatividade e foi um elemento determinante para a forma como se produz Arte. O segundo Andy Warhol, da maneira como classificou o comércio da arte, como os valores subiram e como se massificou os múltiplos. Sem dúvida, são dois artistas que transformaram a forma como hoje nos relacionamos com a arte contemporânea.
A nível nacional, a Paula Rego pela irreverência e pelos temas que aborda. Muitas vezes as pessoas não lidam bem com os temas que ela aborda. Por exemplo, a questão do aborto, quando se discutia a despenalização do mesmo em Portugal. Ela teve a coragem de tocar no tema e foi uma das pessoas influentes para que isso acontecesse. Apesar das pessoas acharem que é excêntrica ou louca, ela preocupa-se muito com aquilo que a rodeia e os temas que aborda, apesar de algumas vezes ser com algum sarcasmo. É uma pessoa que está muito sensível e preocupada com a sociedade que a rodeia. Essa consciencialização é muito importante nos dias de hoje. Em tempos históricos em Portugal, o Amadeo de Souza-Cardoso foi um caso único, tendo ido para França e lidado com os grandes mestres da altura. Teve uma postura muito diferente em relação à vivência conservadora que se vivia em Portugal. Até ao 25 de abril de 1974 era tudo muito fechado.
Vieira da Silva é uma artista singular. Ainda hoje, vejo obras dela e sinto que não existe nada parecido. Também esteve em França e conviveu com muitos artistas fantásticos da sua altura, era muito respeitada. É uma artista que rasgou completamente com o que se estava a fazer, e ainda hoje o trabalho dela tem uma frescura muito particular.
Se tivesse a possibilidade de escolher uma obra de arte para a sua “coleção pessoal”, qual seria?
Há uma entrevista da Paula Rego, quando a Casa das Histórias abre, que lhe perguntam de onde surgem as ideias para as suas pinturas. Ela responde que são coisas da vida e olha para um quadro, começando a relatar que me pintou a mim a brincar com um gato no jardim da casa dos meus pais, na década de 1980. O gato estava a brincar com o gafanhoto e eu estava a brincar com o gato. Na entrevista Paula Rego afirma que me pintou com os olhos esbugalhados. Esse era um quadro que eu gostava de ter! Também não me importava de ter um Rothko. Uma das salas que eu mais gosto de ir é a da Tate Modern e sem dúvida faz-me desejar um Rothko. Há uma história engraçada do meu pai! Sempre que ia a Amesterdão, visitava a pintura da “The Milkmaid (A Leiteira)” de Johannes Vermeer, às vezes repetia os dias que ia ao museu, ficando imenso tempo a olhar para o quadro. Chegou a um ponto que o segurança achava que o meu pai estava a planear o roubo da obra.
Quais são os cinco livros que recomendaria ler?
“On the Road” de Jack Kerouac, sobre a Route 66. Fui lendo este livro durante a viagem, tendo sido sem dúvida marcante para mim. “O Erro de Descartes” de António Damásio, que aborda a questão do sentimento, razão e o aspecto sobre as emoções. “A máquina de fazer espanhóis” de Valter Hugo Mãe, “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde e “As Velas Ardem Até ao Fim” de Sandor Marai.
Nos últimos anos assistimos a uma mudança de paradigma, com o mundo da arte a tornar-se cada vez mais digital. As vendas online têm vindo a crescer exponencialmente, e recentemente, surgiram os Non-fungible tokens (NFTs), a grande novidade do mundo da arte. Quais são as suas perspectivas em relação ao mercado online e aos NFTs?
Para já é uma novidade! Há projetos que são pertinentes, contudo a nível de galerias ainda não vi nada que me convencesse. Os projetos têm feito algum sentido, para mim, partem dos próprios artistas que desenvolvem um NFT. Esta é uma maneira de terem visibilidade e de captarem algum dinheiro diretamente para eles. Acho que os NFTs nunca irão substituir a obra de arte em concreto. Na Art Basel em Miami havia um projeto só dedicado aos NFTs bastante interessante, contudo acho que ainda existe uma euforia excessiva sobretudo sobre os valores.
Para finalizar, quais são os eventos culturais que mais anseia visitar em 2022?
Sente-se que existe um entusiasmo muito grande sobre a Bienal de Veneza, por ser aquele espaço onde se cruzam todas as pessoas das artes e depois de uma pandemia será uma grande festa, o acontecimento do ano.
Em relação às feiras estas encontram-se numa situação desafiante, pois antes da pandemia eram modelos um bocado esgotados: os preços dos stands eram muito altos e as galerias faziam um grande esforço para participar. Por exemplo, a Art Basel em Miami (em dezembro de 2020) estava bem organizada e os stands estavam muito bem concebidos, contudo não havia público. Estes eventos continuam a acontecer, mas já não estão com tanta força, como noutros tempos. Eu acho que as feiras têm que se reinventar!