Quem foi Paula Rego
Paula Rego faleceu esta quarta-feira, dia 8 de junho de 2022, aos 87 anos de idade. A artista visual luso-britânica, ficou particularmente conhecida pelas suas pinturas e gravuras baseadas em contos, com um estilo denominado de "belo grotesco". Ao longo da sua carreira, criou um mundo fantástico e muito próprio, repleto de magia mas também violência e provação. A pintura, a cerâmica e a serigrafia foram algumas das técnicas que adaptou para expressar a dor, o amor e até quebrar tabus. Considerada em 2021, pela Financial Times, uma das 25 mulheres mais influentes do ano, Paula Rego começou desde dá década de 1990 a ter finalmente a atenção que merece pelo trabalho extraordinário que tem vindo a desenvolver. Exemplo disso, são as recentes retrospetivas na Tate e outros museus de renome. Descubra mais neste artigo sobre a extraordinária artista portuguesa e as suas fontes de inspiração, donde extraiu um léxico figurativo muito próprio.
Vida Pessoal de Paula Rego
Dame Maria Paula Figueiroa Rego nasceu em Lisboa, Portugal, em 1935, três anos após a tomada do poder pelo ditador António de Oliveira Salazar. Desde muito cedo, Paula Rego foi apresentada a um ambiente familiar culturalmente rico, permeado por ideais políticos republicanos e liberais. A família mantinha relações com outras culturas europeias e as convicções políticas de José Rego (pai de Paula Rego) colidiam com a situação política de Portugal naquele momento. Desde 1932, António de Oliveira Salazar, primeiro-ministro de Portugal deu continuidade à ditadura militar e mergulhou o país num longo período de escassa liberdade política e social que se estendeu até a Revolução dos Cravos em 1974.
Durante a sua infância, o pai da artista portuguesa teve oportunidade de estudar Engenharia em Inglaterra. Quando voltou a Portugal ficou impressionado com postura anti-regime. De facto, desde cedo, Paula Rego desenvolveu uma consciência política e consciência da injustiça e da violência, particularmente contra as mulheres. O regime de Salazar – a sua tortura sistemática, polícia secreta e detenções sem julgamento – criou uma ansiedade e raiva em Paula Rego, que expressou esta através da sua arte. Começou a pintar ainda jovem, e aos 15 anos já retratava a sua visão de tortura, O Interrogatório (1950). De 1945 a 1951, Paula Rego frequentou a St. Julian’s School em Carcavelos, uma experiência enriquecedora do ponto de vista cultural e artístico, por se tratar de uma escola inglesa que oferecia um amplo horizonte da cultura britânica.
Devido à situação política presente na altura em Portugal — ditadura fascista de Salazar — Paula Rego foi estudar na Slade School of Fine Art, University College London. Nesta escola recebeu o seu 1º Prémio Summer Composition, em 1952. Em Londres, conheceu o artista, ainda estudante, Victor Willing com quem casou e teve três filhos. Esta relação foi tempestuosa e complexa, com infidelidades de ambos os lados. Um triângulo amoroso entre Paula Rego, Victor Willing e o seu amante é retratado na pintura de 1981, “Red Monkey Offers Bear a Poisoned Dove”. O filho de Paula Rego, Nick Willing afirmou ao Jornal Público: “Os meus pais tiveram um casamento com muito amor, mas também complicado, com muita dor, muito sofrimento. Em Red Monkey Offers Bear a Poisoned Dove, uma das pinturas da série The Red Monkey, do começo dos anos 1980: o urso é o amante de Paula Rego, que nela se representa como a pomba que o marido, o pintor Victor Willing (o macaco, naturalmente) entrega a outro homem. As pinturas desta série dão permissão à minha mãe para fazer algo que ela tinha medo de fazer e que acabou por não chegar a fazer – cortar a relação com o meu pai, que viveu muitos anos doente, na cama. A minha mãe teve outros namorados enquanto estava casada com o meu pai, divertiu-se muito, mas nunca deixou de ser a mulher do Vic Willing. Ainda hoje é.”
"Red Monkey Offers Bear a Poisoned Dove" de Paula Rego, 1981
Em 1957, voltou para Portugal, mais propriamente para Ericeira. Entre 1965-1966, Paula Rego realizou a sua primeira exposição individual na Galeria de Arte Moderna, na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa. Uma exposição muito bem acolhida pela crítica e pelo público, que considerou as suas obras extremamente inovadoras, embora tenha sido considera como uma artista política que desenvolvia métodos de trabalho e imagens violentas.
A partir de 1963, a volta da Fundação Gulbenkian termina e artista andou entre os dois países, Portugal e Reino Unido, até 1976, quando se fixou em Londres. O ano de 1966 marcou o início de uma época bastante complicada na vida de Paula Rego: primeiro ocorreu o falecimento do seu pai e, imediatamente depois disso, o diagnóstico da doença degenerativa do seu marido, Victor Willing, que, com o sucedido, passa a gerir os negócios da família da artista, afastando-se da pintura. Em 1969, Paula Rego aceitou o convite para participar da XI Bienal de São Paulo – Brasil. Em 1983, começou a lecionar como professora convidada na disciplina de Pintura da Slade School of Fine Art e, em 1988 realizou a sua primeira grande exposição individual na Serpentine Gallery, em Londres. Em 1983, Paula Rego foi convidada por Moira Kelly para participar de uma exposição, em Nova Iorque, de arte inglesa intitulada Eight for the Eighties.
The Policeman’s Daughter" de Paula Rego, 1987
Em 1988, Victor Willing faleceu em decorrência de uma esclerose múltipla. Em 1990, Paula Rego foi convidada para ser a primeira Artista Associada da National Gallery de Londres. As duas primeiras obras que a artista concluiu durante a sua estadia na National Gallery foram “A Prova” e “A Madrinha do Novilheiro”, obras sobre as relações de poder baseadas nas posições da hierarquia social. Na década de 1990, é finalmente reconhecida internacionalmente pelo seu trabalho. A sua produção tem sido mostrada desde 1988 (Fundação Calouste Gulbenkian) retrospetivamente, destacando-se as exposições na Fundação de Serralves (2004), Tate Britain (2005) e Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Em 2009 abriu ao público, em Cascais, a Casa das Histórias Paula Rego, dedicada ao trabalho da artista e do seu marido, Victor Willing. Em 2017, estreou o filme-documentário Paula Rego, Histórias & Segredos, realizado pelo seu filho.
As Influências na Obra de Paula Rego, desde os contos aos filmes da Disney
Paula Rego destacou-se por criar uma linguagem figurativa totalmente original com base nas histórias, sejam contos tradicionais, contos de fadas, romances ou peças de teatro. Este é o fio condutor constante da sua obra, a reinvenção imaginária da literatura de autores como Charlotte Brontë, Eça de Queiroz, Franz Kafka, Hans Christian Andersen e Martin McDonagh. Através da pintura, Paula Rego procura “integrar histórias eternas na mitologia contemporânea e experiência subjectiva”. Além dos temas, também na técnica “manifesta uma autonomia autoral que a destaca das principais tendências artísticas vigentes, do abstracionismo ao conceptualismo, privilegiando uma linguagem figurativa, através da qual compõe cenas surreais, misturando figuração e abstracção, com um fino sentido satírico”.
Os livros foram uma presença constante na casa da família Rego, especialmente, aqueles com trabalhos de ilustradores ingleses, como John Tenniel (1820-1914) em Alice no País das Maravilhas (seu favorito), Arthur Rackham (1867-1939), Beatrix Potter (1866-1943) e outros, mas sobretudo do famoso francês Benjamin Rabier (1864-1939), muito conhecido como o autor do anúncio La vache qui rit. Estas obras e o cinema, nomeadamente os filmes de Walt Disney (Fantasia, Peter Pan, Pinóquio e Branca de Neve e os Sete Anões), também influenciaram positivamente a imaginação e o processo criativo da artista. Estes filmes e contos originaram séries de pinturas, gravuras e desenhos que a artista desenvolveu de forma muito peculiar.
Paula Rego reconstruiu as histórias, a partir de elementos que podem ir de um personagem ou acontecimento até um fragmento de imagem para reconstruí-los a partir de um novo ponto de partida, criando novas histórias e estabelecendo múltiplos desfechos e relações intertextuais. A artista trouxe as historias da sua infância, da sua memória e reunas numa multiplicidade de referências que dão origem às histórias que ela reiteradamente inventa/reinventa durante cinco décadas de atividade artística, num constante processo de criação e devir.
"Snow White Swallows the Poisoned Apple" de Paula Rego, 1995
Os Animais nas Pinturas de Paula Rego
O processo de hibridização entre formas humanas e/ou animais pretende questionar e subverter o princípio primordial de todas as hierarquias: o humano acima do mero animal, com o intuito de deslocar a supremacia da razão humana, sem, no entanto, propor uma nova hierarquia, pois as pessoas também são capazes de agir e de reagir de forma irracional, constituição inerente da humanidade. Paula Rego traz esse jogo de transgressão hierárquica para que o seu público reflita sobre a segregação do componente animalesco intrínseco ao ser humano que historicamente a sociedade se empenha em reprimir.
‘War’ de Paula Rego, 2003
Contos Populares Portugueses na obra de Paula Rego
Em 1975, Paula Rego recebeu da Fundação Calouste Gulbenkian uma bolsa de pesquisa sobre contos de fadas em Londres. A artista se debruçou sobre o projeto Por aproximadamente seis meses, a artista concentrou a sua pesquisa nos ilustradores e nos contos populares portugueses, presentes na Biblioteca e o British Museum. A partir desta nova referencia, Paula Rego executou uma série de pinturas a guache intituladas, Contos populares portugueses: Branca-Flor, 1974-5. Esta obras tiveram como pano de fundo a tradição oral dos contos portugueses, contudo Paula Rego não cria ilustrações literais das histórias. O que interessou à artista foi o entrecruzamento entre as suas próprias memórias, os significados dos contos e os acontecimentos do quotidiano políticos e sociais.
«Contos Populares Portugueses: Branca Flor – o diabo e a diaba na cama» (pormenor) de Paula Rego, 1975
A Mulher nas Pinturas de Paula Rego
Paula Rego trabalhou o realismo, ou seja, de forma imponente, confere às figuras uma atitude e uma gravidade próprias das figuras das pinturas históricas. A temática da pintura histórica é calcada em fatos históricos de grande importância, cenas mitológicas, literárias e da história religiosa. Assim, a hierarquia patriarcal foi constantemente revelada nas suas pinturas. Exemplo disso, é a pintura “O Cadete e a Irmã”, que representa uma relação entre irmãos notadamente marcada pela subserviência do género feminino. A figura do irmão está sentada num banco de pedra, enquanto que a jovem se encontra agachada, em forma de humilhação. Esta obra bateu recordes num leilão em Londres.
Propriedade de um coleccionador privado americano, The Cadet and his Sister tinha uma estimativa inicial de entre 846 mil euros e 1,1 milhões de euros, mas acabou por ser arrematado por 1.614.795 euros, um novo recorde da artista, adiantou à agência Lusa fonte da Sotheby's, organizadora do leilão. O recorde anterior estava nos 865 mil euros e foi atingido em 2011 com a venda do quadro Looking back (1987) pela Christie's. Destacam-se outras pinturas inseridas neste temática como Partida (1988), “A filha do Soldado” (1987), “A Filha do Polícia” (1987) e ”A Família” (1988). A série da “Mulher-Cão” também inaugurou uma nova forma da artista trabalhar a composição visual, com as complexas narrativas visuais, repletas de elementos e pormenores e de vários personagens numa única obra, que ofereceram um espaços pictóricos reduzidos a uma ou duas personagens.
"The Cadet and his Sister" de Paula Rego
A técnica pictórica de Paula Rego
As primeiras obras produzidas em meados dos anos 1950, envolviam o desenho, o recorte das formas, a colagem, a sobreposição e a intervenção de outros materiais como a tinta e o pastel, constituindo, assim, a imagética da obra, continuamente se tornam um elemento indissociável do assunto tratado. O desenho é um suporte constante para o trabalho de Paula Rego, que se pode denotar, desde das figurações ingénuas durante os seus anos na Slade School of Art até suas colagens políticas sobre um país sob ditadura, passando pelas peças narrativas em acrílico.
A partir da década de 1980, a artista abandonou as colagens e dedicou-se a pintura e ao desenho figurativo, sendo que as técnicas utilizadas se harmonizaram plenamente com o conteúdo temático das obras. “Naquela ocasião, o desenho gestual elaborado a tinta, diretamente sobre a superfície e a paleta reduzida de cores concentram a necessidade da artista se expressar de forma direta e rápida. Essa exigência se justifica em parte, pela influência da Art Brut de Dubuffet e pelos pressupostos do automatismo surrealista, duas importantes referências que marcaram a sua trajetória artística.”
"O Tempo – Passado e Presente" (pormenor) de Paula Rego, 1990
Porém, a partir do início da década de 1990, quando se torna na Primeira Artista Associada da National Gallery, em Londres, o contacto com a pintura clássica faz com que as suas composições adquiram uma concepção espacial e figurativa naturalista, originando uma mise en scène que mantém, no entanto, a mesma carga dramática e intrigante transversal aos seus trabalhos. Nesta altura, já tinha feito a transição da tinta para o pastel. Durante grande parte de sua carreira, Paula Rego preferiu os pastéis aos óleos, tendo afirmando numa entrevista: "Sim. Pastel, pastel, pastel, pastel, pastel [...] Nunca esfregando nada. Desenhar, desenhar, desenhar [...] não gosto da vacilação do pincel, sou não estou bravo com a qualidade lírica do pincel. Prefiro muito a dureza do bastão [...] O bastão é mais feroz, muito mais agressivo."Paula Rego nunca utiliza a técnica da perspectiva académica sendo a bidimensionalidade da tela, um potente recurso de representação temporal em virtude da disposição das formas que se encontram distantes e próximas ao mesmo tempo. Pintados a partir da observação direta, os modelos retratam sentimentos e traumas individuais, mas também coletivos e femininos, sobretudo na série “Aborto”, manifesto político sobre o primeiro referendo de Portugal sobre a interrupção voluntária da gravidez. As pinturas vívidas de Paula Rego oferecem um retrato assombroso da sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, da própria natureza humana.
"The Dance" de Paula Rego, 1988
Influência da Artista
Internacionalmente, a influência do trabalho de Rego é muito sentida na pintura, escultura e gravura contemporâneas. Paula Rego trabalhou o realismo, ou seja, de forma imponente, confere às figuras uma atitude e uma gravidade próprias das figuras das pinturas históricas. Esta perspectiva influenciou outros artistas. A curadora britânica, de arte moderna e contemporânea na Tate Britain, acredita que a influência de Paula Rego foi mais ampla e mais profunda do que muitas vezes se reconhece. “Eu vejo [sua influência] no trabalho da maioria das pintoras – particularmente em artistas que se envolvem com o corpo – e com a posição da mulher no mundo. Na verdade, eu lutaria para pensar em um pintor significativo, principalmente na Grã-Bretanha, onde não consigo ver uma conexão com Paula." Artistas que desafiam as representações tradicionais do corpo feminino são particularmente gratos a Paula Rego, por exemplo, a pintora britânica Jenny Saville.
"Love" de Paula Rego, 1995
Reconhecimento Nacional e Internacional de
Paula Rego é umas das principais artistas portuguesas com uma grande influencia internacional. Em 2004, teve mais uma retrospetiva no museu de Serralves, no Porto, e em 2009, foi homenageada com a criação da Casa das Histórias Paula Rego, um museu dedicado construído em Cascais, onde passou muito tempo em criança. O edifício foi projectado pelo arquiteto Eduardo Souto de Moura, que inseriu perfeitamente uma impressionante estrutura contemporânea num belo cenário natural. O museu abriga muitas obras de Rego, bem como pinturas do falecido marido da artista, Victor Willing. A sua produção tem sido mostrada desde 1988 (Fundação Calouste Gulbenkian) retrospetivamente, destacando-se as exposições na Fundação de Serralves (2004), Tate Britain (2005) e Museo Nacional Centro de Arte Rainha Sofia e recentemente teve uma retrospectiva na Tate Britain e uma sala dedicada às suas pinturas na Bienal de Arte de Veneza.