“Eu não faço arte sobre arte. Não é isso que me interessa. É qualquer coisa sobre mim que é arte. É uma prática física, quase, física porque eu faço objectos que podem ser vistos e nalguns casos tocados. Eu faço arte que tem a ver com práticas da sedução.” Julião Sarmento, 1992 (entrevista conduzida por Alexandre Melo).
A Figura Fundamental da Arte Contemporânea em Portugal
Julião Sarmento, um dos mais reconhecidos artistas contemporâneos portugueses, faleceu na manhã de terça-feira, dia 4 de maio, deixando uma notória e emblemática obra pontuada pela experimentações de todos os meios ou técnicas. Nas últimas cinco décadas, a multidisciplinaridade do trabalho do artista português abordou temas como o erotismo, a sexualidade, a literatura ou o cinema. Ao mesmo tempo, questionou os conceitos do desejo, da ausência, do tempo e da linguagem através de diferentes meios (a pintura, o desenho, a escultura, colagens, a instalação, vídeo, a fotografia e a performance). Nascido em Lisboa em 1948, Julião Manuel Tavares Sena Sarmento iniciou a sua carreira em 1968, na exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes. Na década seguinte, conquistou a consagração do público português; a partir de 1990, consolidou a sua carreira internacional, quando fazê-lo parecia uma quimera. Longe de apresentar uma constituição exaustiva das suas obras, este artigo permite evidenciar as linhas de investigação e de criação que Julião Sarmento explorou obsessivamente ao longo da sua extensa carreira.
A primeira década do seu longo percurso artístico
O discurso artístico de Julião Sarmento viaja ao longo das décadas em volta de certos elementos como o corpo, a sensualidade, a noção do tempo, citações literárias e textos originais, a fragmentação das formas, o erotismo e voyeurismo, independentemente dos meios usados. No início da sua carreira, na década de 1970, existe um conjunto de peças que são produzidas por meios de expressão consequentes da revolução das linguagens técnicas e conceptuais da altura que enunciam os princípios dos seus futuros trabalhos. Assim, começa por introduzir diversos meios como a linguagem verbal nas suas obras devido ao interesse pela literatura e a influência da arte conceptual.
Peça variável - 5 intervenientes, de 1976, oferece ao espectador duas leituras possíveis — a visual e a escrita — através de três elementos: fotografia, texto e desenho, formando um jogo quase primário. Partindo da primeira fotografia numa encenação do corpo, praticamente performativa, Julião Sarmento pede a um interveniente exterior para descrever esta fotografia num texto. De seguida, outro interveniente desenha uma representação, a partir da leitura desse texto, e assim sucessivamente, até obter uma bifurcação de significados e uma ambiguidade dos sistemas de comunicação. Esta peça sobre a desconstrução da representação marcou presença na relevante exposição «Alternativa Zero».
Peça variável - 5 intervenientes de Julião Sarmento, 1976 - Coleção de Serralves
Nesta década de intensa produção criou em diversos meios como a fotografia - Memory Piece (Two Friends) de 1976, Sem título (Bataille) de 1976 e Quatre Mouvements de la Peur de 1978 — filme, — Pernas de 1975 e Faces de 1976 — ou conjugando diferentes técnicas — como em Segredos do Mundo Animal, uma série de trabalhos que tinham um sentido de animalidade, no qual misturava pessoas com bichos.
O Ciclo das Pinturas Brancas
No final da década de 1970 sente-se um esgotamento das linguagens conceptuais; consequentemente, os artistas voltam à pintura. Assim, na década seguinte, Julião Sarmento criou quadros com vários painéis, dando uma unidade singular a um conjunto a partir da fragmentação de elementos numa justaposição. Estas obras foram expostas em diversos espaços culturais como Galeria Cómicos, em Lisboa, Galleria Marilena Bonono, em Bari, e Modulo, no Porto. Contudo, com a ida para os Estados Unidos da América, esta associação de universos díspares passa a sobrepor-se numa mesma imagem. Exemplo disso é a obra «Noite Americana», de 1989.
Noite Americana de Julião Sarmento, 1989 - Coleção de Serralves
Posteriormente, surge o ciclo das Pinturas Brancas, telas com ausência de cor definidas por traços a grafite, sendo praticamente desenhos sobre tela. Os títulos não são ilustrativos das suas pinturas, mas completam a própria obra, como se fossem a última pincelada. Ao contrário da década anterior, constituída por vários painéis, em Wasting My Time With You #928, de 1994, o artista cria uma obra somente com dois painéis, utilizando as suas duas cores prediletas da altura: do lado direito, o branco; do outro, o preto. Segundo o artista, na tela branca encontram-se representadas duas figuras, um homem que puxa as calças ao sentir que estas lhe estão apertadas e um cotovelo junto a uma aresta, transportando ambas uma situação desagradável. A agressão e os momentos imprevisíveis estão recorrentemente presentes na sua obra com elementos cortantes como facas. No lado esquerdo, de inferior proporções, é visível uma cerca branca cortada ao meio pelo fundo preto. As figuras representadas nesta obra são assíduas durante a carreira do artista, nas diversas séries, por existir uma coerência e uma “migração” de pensamentos e ideias.
Wasting My Time With You #928 de Julião Sarmento, 1994 - Museu Coleção Berardo
Em 1997, Julião Sarmento representou Portugal na Bienal de Veneza, concebendo para os espaços do Palazzo Vendramin ai Carmini (Pavilhão Português) um conjunto de pinturas que prolongam o ciclo das Pinturas Brancas, iniciado em 1990.
Além das pinturas brancas, Julião Sarmento criou em outros meios nesta década. Exemplo disso é a instalação Cerco Dois, de 1993, que reflete as condições da mulher a partir duma relação entre corpos encarcerados. Esta obra materializa a irracionalidade como a mulher é representada, trazendo uma relação de poder e de submissão e uma antropologia do comportamento dos animais com uma animalização dos seres humanos.
Cerco Dois de Julião Sarmento, 1993
A consolidação da carreira no novo século
Na primeira década do novo século, o artista regressou a meios já explorados nos anos 1970, como o vídeo, a fotografia e a instalação, embora sem deixar a pintura. Ancorado num discurso à volta do corpo, do feminino, da sensualidade e do questionamento dos conceitos de desejo, ausência, tempo e linguagem, criou obras como a instalação Cura em Anozero — Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, uma série de fotografias intituladas por American Landscape e múltiplos vídeos como Parasite de 2003, Voyeur de 2007 e O Fim do mundo de 2015.
American Landscape 6 de Julião Sarmento, 2004
Entre 1967 e 2005, o artista produziu mais de cinquenta vídeos, conduzido pela sua paixão pelo cinema e por artistas como Andy Warhol, que foram uma referência para os seus filmes super 8mm, onde cria uma interação com uma grande intensidade de movimentos entre o corpo e a câmara, num jogo de sedução e desejo. O artista detalhou o processo numa entrevista à revista Umbigo:
“No fundo, a câmara era quase uma extensão do meu próprio corpo. Funcionava como o meu olhar sobre o corpo, como uma interação do meu próprio olhar que era filtrado pela câmara. Eu era quase como os japoneses (passo a comparação) que vão visitar os grandes monumentos históricos e nunca os vêem, a não ser quando chegam ao Japão. Eles têm sempre uma visão abstrata das coisas, porque já saem do autocarro de máquina em punho.”
Faces de Julião Sarmento 1976, filme Super 8, cor, sem som, 44’ 22’’ - Colecção Van Abbemuseum, Eindhoven
Com uma carreira consolidada nacionalmente e internacionalmente, o seu espólio de obras de arte encontra-se em inúmeras instituições, desde o Tate Modern, em Londres, ao Guggenheim, em Nova Iorque. Em 2002 representou Portugal na Bienal de São Paulo e, em 2012, o Museu de Serralves organizou a primeira exposição retrospectiva do artista, Noites Brancas. Em 2020, lançou o livro Café Bissau, em que apresentou fotografias de sua autoria tiradas entre 1964 e 2017.
Durante este longo percurso, Julião Sarmento tornou-se numa das figuras centrais da arte contemporânea, acompanhando as correntes artísticas que dominavam contudo mantendo a sua coerência interna. Para a eternidade, o artista português deixou-nos a sua herança artística fundamental para a história da arte em Portugal.