Hugo Castilho cria um universo íntimo, ao juntar o seu gosto pela fantasia e do desenho com relevo da linha. Assente na superfície o desenho, modelado e pintado, emerge enquanto obra tridimensional. Neste encontro, a vida é celebrada de forma inclusiva, ética e humorística, ao abraçar enquanto veículos de expressão figurativa: humanos, animais e natureza. Hugo Castilho nasceu em Setúbal em 1995, licenciou-se em Artes Visuais - variante de Multimédia em 2016, na Universidade de Évora e, em 2021, concluiu o Mestrado em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Exibiu individualmente o seu trabalho artístico em 2017 e 2019 no Espaço das Artes da Casa da Cultura de Setúbal, e em 2022 na Galeria Arte Periférica no Centro Cultural de Belém. Coletivamente expôs na Zetgallery em Braga em 2019, e na Drawing Room Lisboa na Sociedade Nacional de Belas-Artes em 2021, representado pela Galeria Arte Periférica. Atualmente, encontra-se focado em produzir pinturas sobre alto-relevo e escreve romances de não ficção. Conheça mais sobre o artista plástico Hugo Castilho nesta entrevista.
Conta-nos como começou esta paixão pelo mundo da arte.
A minha entrada para o mundo da arte estará para sempre ligada à escorregadela da minha avó. No verão de 2016, eu terminara a licenciatura em Artes Visuais - variante de Multimédia, pela Universidade de Évora, e após uma jornada de curtos trabalhos temporários, começara a trabalhar num part-time como operador de logística (o qual eu detestava). Um dia, no final do outono do mesmo ano, quando regressei a casa depois do turno da noite, a minha avó não estava lá. A minha mãe contara-me que ela escorregara na casa de banho e partira o fémur e, por isso, encontrava-se no hospital de Setúbal. Durante a recuperação, o já débil estado de saúde dela veio a piorar com dois sucessivos AVCs, e foi neste contexto de incerteza e angústia que eu, com vinte anos acabados de somar, comecei a pintar.
Desde criança que sempre tivera uma paixão pelo mundo dos desenhos animados (essa era minha profissão de sonho), mas não posso dizer que alguma vez sentira o mesmo pelo mundo da arte. O que me levou a pintar foi, na sua essência, a escorregadela da minha avó e a sua consequente perda de vitalidade. Eu, incapaz de regressar atrás no tempo e impedir que, de alguma forma, tal sucedesse, e, também, emocionalmente perturbado com o meu rumo profissional (ou a ausência dele) - uma vez que as minhas animações eram umas desanimações -, numa certa folga, ao ziguezaguear pelas divisões da minha casa, entrei na dispensa e lá dentro encontrei duas latas de tinta de esmalte. Ambas as latas - uma com tinta verde e a outra com tinta azul - estavam num canto da pequena divisória como se tivessem perdidas, ou até mesmo escondidas (anos antes, foram utilizadas para pintar uma parede do quarto da minha mãe, e a outra do meu quarto). Embora eu tivera seguido o curso de Artes Visuais na escola secundária em Setúbal, e a minha licenciatura tivesse ligada ao âmbito artístico, eu nunca gostara propriamente da vertente da pintura e conta-se numa mão as vezes que pintei com acrílico, aguarela, guache ou óleo. Contudo, naquele instante e sem pensar bem porquê, agarrei nas latas; procurei por uns pincéis (por estrear desde a escola secundária) e numas placas de mdf (que tinha adquirido para um projeto de faculdade e que nunca chegara a realizar); coloquei tudo no chão do meu quarto e lancei-me à pintura.
Desde esse encontro, nunca mais larguei as tintas de esmalte e, gradualmente, a atividade de pintar fora ocupando cada vez mais do meu tempo livre nas folgas, sozinho no meu quarto (sempre que, claro, não me encontrava a fazer companhia à minha avó no hospital e mais tarde numa unidade de cuidados continuados). Neste sentido, estou seguro em partilhar que a pintura (e o mundo da arte) escorregou literalmente para a minha vida como uma forma terapêutica de me entreter. Em 2017, poucos meses depois desse encontro, e terminado o meu contratado de trabalho de part-time, a minha rotina resumira-se a duas ocupações: cuidar da minha avó (que entretanto recuperara minimamente e regressara ao conforto da minha casa), e a fazer aquilo que, até ao momento, revelou ser a maior descoberta da minha vida: pintar.
Como funciona o teu processo criativo? Quais são os elementos que te inspiram?
Com a conclusão do mestrado em pintura, pela FBAUL, no início de 2021, a temática do meu trabalho artístico, perceptível nomeadamente pelo seu discurso figurativo, tem-se debruçado em torno da minha vida: seja através de memórias de um passado real, distorcido ou ficcional, mergulhando com nostalgia nas minhas vivências de criança, e relembrando os dias das diferentes estações a brincar pelo campo com os meus amigos; ou em ambientes familiares domésticos com entes queridos que há muito já cá não estão; seja tomando como referência a minha presente rotina diária, que se desenrola sobretudo em casa, na companhia dos três elementos que mais me inspiram: a minha mãe, a minha avó e o meu gato; mas também pelo consumo intensivo de filmes, música e literatura. E, exteriormente, pelas essenciais caminhadas pelo Estuário do Sado, onde consigo estudar, com os olhos de quem quer criar, uma variedade de formas de vida animal, também elas atarefadas com as suas ocupações diárias de sobrevivência. Como tal, sempre que quero conceber novas peças, basta-me sentar à secretária e começar a desenhar, escavando na memória o conteúdo armazenado ao longo dos tempos. Após rabiscar muitos desenhos, é comum alguns caírem-me na graça e serão esses que, mais tarde, irei utilizar como estudo e transpô-los para o suporte físico da tela pictórica: primeiro esculpindo e depois pintado.
Nas tuas peças de arte crias um universo íntimo, ao juntar o teu gosto pela fantasia e pelo desenho com relevo. Assente na superfície o desenho, modelado e pintado, emerge enquanto obra tridimensional. Como surgiu este interesse pela tridimensionalidade?
Julgo que o interesse pela tridimensionalidade no meu trabalho tenha sido despertado pelas aulas livres de cerâmica durante o Mestrado em Pintura. No entanto, a vontade de trabalhar com matéria talvez já existisse, ainda que que eu nunca a tivesse explorado plasticamente. Neste caso, parece-me que o género de cinema de animação de stop-motion, onde são utilizados modelos reais para elaborar as personagens e os cenários para a produção desses filmes, tenha tido uma relevante influência na vontade de fazer emergir da base tela pictórica as minhas próprias personagens, ao atribuir-lhes relevo com a volumetria da matéria. Como se ganhassem vida.
Nas tuas obras de arte, a vida é celebrada de forma inclusiva, ética e humorística, através de veículos de expressão figurativa: humanos, animais e natureza. Como sentes que o teu trabalho afecta o espectador?
Não penso muito nisso, mas a mim, por vezes, fazem-me sorrir em momentos tristes.
No teu “atelier” trabalhas em diversos projetos simultaneamente: quantos trabalhos tens neste momento “em progresso”? Há algum que te esteja a apresentar desafios específicos que gostasses de partilhar?
Neste momento não tenho nenhum conjunto de obras em curso, pois encontrava-me pela sétima vez a trabalhar profissionalmente fora da área artística - este último como operador de loja num centro comercial -, e como já era de esperar, ainda que me desse alguma estabilidade financeira mensalmente, as mais de nove horas diárias de trabalho lá enfiado, impedia-me de ter pulmão para respirar ou cérebro para criar sempre que regressava a casa e entrava no atelier. É isto que acontece quando se quer ser artista e se quer ter unicamente como fonte de rendimento a venda do seu trabalho artístico, mas não se tem o “talento” para provir de uma família com posses e contactos certos dentro da “cena nacional artística”. Porém, agora que abandonei esse trabalho, espero ter energia - enquanto tenho tempo - para pôr novamente as mãos na massa de alisamento e na tinta de esmalte.
Quais são os artistas que tem inspirado?
Artisticamente sinto-me mais influenciado pelo trabalho de cineastas como o Wes Anderson, o Jim Jarmusch, o Pedro Almodovar, o Majid Majidi, o David Lynch, o Eric Rohmer, o Andrei Tarkovsky; e sobretudo pelas animações do Hayao Miyazaki (Studio Ghibli) e do Chuck Jones (Looney Tunes). A música é a forma de arte que me acompanha todo o dia e parece-me inegável que também ela acabe por contaminar o meu trabalho artístico. Entre os músicos que mais ouvi nos últimos tempos estão: Bill Evans, Aphex Twin, Brian Eno, Penguin Cafe Orchestra, Frank Zappa, Yo La Tengo, Fleetwood Mac, Radiohead, Leonard Cohen e Kevin Hayers. Apenas esporadicamente investigo o trabalho de outros artistas plásticos. Quando o faço, é pela internet, e gosto particularmente de passar os olhos pela pintura japonesa; descobrir obras de artistas considerados naïf pelas elites contemporâneas; e redescobrir obras de Picasso, Matisse, Henri Rousseau, Van Gogh, Munch, Hopper, Brueghel, Hockney, Bonnard, O’Keeffe, Frans Snyders, Peter Doig, e do escultor Henry Moore.
És um jovem artista, tens algum conselho que queiras partilhar aos jovens que estão a dar os primeiros passos no mundo da arte?
Criem o que sentem que têm de criar e não o que os demais acham que deve ser criado.
Por fim, qual é o artista com quem sonhas trabalhar um dia?
Nenhum, pois desfruto particularmente de estar e trabalhar sozinho. Para além disso, produzi ao lado dos meus amigos e colegas artistas durante dois anos no mestrado de pintura, e partilhar o atelier com eles já foi um sonho único que nunca pensei desejar e muito menos realizar.