Vênus de Urbino de Ticiano, 1538
As questões sobre o corpo e sexualidade
O nosso corpo e a sexualidade encontram-se ligados à reprodução da espécie, ou seja, à história da humanidade em si. Contudo, as questões em torno desta temática são extremamente complexas, embora seja uma realidade transversal a todos os seres humanos. Este ano, na moda, a sexualidade encontra-se novamente em voga, como podemos observar pelas campanhas da coleção de primavera 2021, L'Amour de Jacquemus e When Together da Diesel. Em oposição, nas últimas décadas os artistas plásticos têm trabalho insistentemente sobre identidade, corpo, género e sexualidade, sendo os seus trabalhos fulcrais para o desenvolvimento do pensamento crítico dos espectadores. Este é um tema que nos segue, como indivíduos e grupos sociais, acabando por retratar as ideias, valores, crenças, religião e cultura. Partindo de representações icónicas de diversos períodos históricos, entenderemos como o corpo nu e sexualidade é moldada e definida por estes diversos fatores.
Vénus de Willendorf
A origem do nu artístico
Uma das primeiras representações do corpo sexualizado é a pequena escultura de Vénus de Willendorf, adorada como deusa da fertilidade. Assim, percebe-se que desde cedo a sexualidade esteve ligada à maternidade. Contudo, com os gregos e romanos esta ideia é desenvolvida de um modo mais amplo, devido ao aspecto social e religioso desta cultura. Estes dão asas aos desejos, sonhos e preocupações humanas, transmitindo os seus ideais sem tabus nas suas representações artísticas.
Baseados na mitologia, a libertação erótica da sua cultura é exibida publicamente através de esculturas dos deuses. Vários artistas representaram Afrodite, a deusa do amor e beleza, nua ou a remover a sua roupa, como podemos ver na escultura de Afrodite de Cnidos ou na Vênus de Milo. O nu artistico é uma constante, mesmo em representações de medo, sofrimento, dor ou morte, como é o caso da escultura grega Laocoonte e seus filhos, que retrata uma lenda da Guerra de troia, na qual Laocoonte e seus filhos, Antífantes e Timbreu, são estrangulados por duas serpentes marinhas.
Laocoonte e seus filhos
Os ideais do corpo da Idade Média à Moderna
Durante os séculos seguintes, a Europa é mergulhada na Igreja de Roma e as religiões pagãs desaparecem, sendo imposta uma moralidade rigorosa que condena desvios morais, com punição pública, tortura ou até mesmo condenação à morte. Assim, a representação do ideal de beleza e harmonia do corpo nu é abandonada pelos conteúdos iconográficos. As poucas figuras despidas da época medieval são retratadas deformadas concebendo a ideia do desprezo do corpo e da imoralidade da sexualidade, como se pode observar nos mosaicos datados de 1250-1970, Inferno de Coppo di Marcovaldo, na cúpula do Batistério de São João.
No gótico e posteriormente na Itália pré-renascentista, o nu artístico renasce de forma bastante tímida, como se pode analisar na obra Baptism of Christ de Giotto, na qual Jesus é representado nu enquanto é batizado por João Batista.
Baptism of Christ de Giotto, 1305
Com as transformações políticas, sociais e culturais da idade moderna, a religião perde a preponderância que tivera na Idade Média. As representações de temáticas religiosas continuam a existir, tendo o corpo nu alcançado um caráter divino, com obras como A criação de Adão e o Juízo Final de Miguel Ângelo. Contudo, esta época é marcada pela ideia humanista do Homem no centro do universo; deste modo, na arte o retrato do humano e do seu ambiente adquirem uma maior relevância. Empregando o uso da perspetiva, os artistas renascentistas inspiram-se na arte da antiguidade clássica, retratando o corpo nu com um carácter estético, como podemos analisar nas seguintes pinturas: Vênus de Urbino de Ticiano, O Nascimento de Vênus de Sandro Botticelli, Apollo and Marsyas de Pietro Perugino, As Três Graças e La Fornarina de Rafael.
La Fornarina de Rafael, 1518–1520
Na época barroca, o nu feminino continuam a predominar as representações, tendo o artista Peter Paul Rubens marcado esta era com as suas pinturas de figuras femininas robusta que encarnam a sensualidade dos episódios históricos e mitológicos: O julgamento de Paris, As Três Graças e Venus, Cupid, Bacchus and Ceres. No final da idade moderna com o rococó, a idealização classicista heróica foi abandonada e assumiu-se um erotismo subtil e refinado. Exemplo disso são as pinturas de François Boucher, O Odalisca e The Toilette of Venus.
As Três Graças de Peter Paul Rubens, 1630–1635
A nudez na contemporaneidade
No início da época contemporânea, após a Revolução Francesa, nasce o neoclassicismo, que recupera novamente as formas da antiguidade clássica, contudo de uma forma pura, severa e fria, de modo a transmitir um conteúdo moral e patriotico para o espetador. A sensualidade humana continua a ser transmitida, mas encubida nestes valores, como se pode analisar nas obras Cupid and Psyche de François Gérard e Morpheus and Iris de Pierre-Narcisse Guérin.
A partir do século XIX até ao presente, o nu feminino na arte é cada vez mais abundante em todos os movimentos artísticos, no romantismo, nas vanguardas da década de 1920 e mesmo na arte do pós-guerra. É imprescindível mencionar algumas das obras fundamentais desta época, que pela ousadia do corpo humano exposto causaram grandes controvérsias: A Liberdade guiando o Povo de Eugène Delacroix, La baigneuse blonde de Renoir, Almoço sobre a relva e Olympia de Édouard Manet, Les demoiselles d’Avignon de Pablo Picasso e Nu rosa de Matisse.
Olympia de Édouard Manet, 1863
Na década de 1960, com a performance de artistas como Carolee Schneemann, Value Export e Marina Abramovic, a nudez transforma-se numa arma contra o domínio do homem, representações sexuais e as desigualdades sociais. No presente, artistas como Julião Sarmento, Mária Sánchez, Paula Rego, Júlio Pomar, Salomé Lamas, João Gabriel, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Duarte Vitória, Patrícia Magalhães, Arlindo Arez, José A. Nunes, entre outros, têm sido fulcrais para o desenvolvimento do pensamento crítico sobre a sociedade que habitamos por levantarem questões imponentes sobre o corpo, identidade e sexualidade. Serve de exemplo a série de pinturas criadas por Paula Rego sobre o aborto que auxiliaram na despenilização da interrupção voluntária da gravidez. Assim, compreendemos que na arte ocidental o corpo nu começou por estar ligado à maternidade e ao sagrado, contudo na contemporaneidade esta temática transformou-se numa manifestação da identidade e das problemáticas presentes na sociedade e na cultura corrente.